Cinco psicólogas com especialização em psicologia hospitalar, em
plantão de 24 horas, sete dias por semana. Com a força tarefa dessa
equipe, a Central de Transplantes de Goiás, braço da Secretaria da
Saúde, conseguiu reduzir a fila de espera por doações de córneas em
quase 60%. O trabalho das profissionais envolve, principalmente, a
sensibilização dos familiares do paciente falecido quanto à importância
da doação.
No caso da captação das córneas, como se trata de um tecido, o globo
ocular pode ser retirado até seis horas após o óbito. Isso significa que
o doador não precisa ter morte encefálica, nem ter os órgãos mantidos
artificialmente graças a aparelhos, como acontece com a captação de
rins, pâncreas, fígado e coração. Essas condições aumentam,
potencialmente, o número de possíveis doadores das córneas e justifica o
foco da atuação da equipe.
Segundo a psicóloga Patrícia Vasconcelos, uma das idealizadoras do
projeto, que começou em junho deste ano, os trabalhos de sensibilização
tiveram uma resposta rápida e contribuíram para diminuir a fila de
espera, que chegava a ter 1,4 mil pessoas, para atuais 592. O tempo
aguardando a doação também caiu: de um ano e meio foi para seis meses.
“Mostramos como a doação pode ajudar a melhorar a vida das outras
pessoas. As famílias têm se conscientizado e entendido como é importante
esse ato”.
O médico Luciano Leão é gerente da Central de Transplantes de Goiás. Foto: Sebastião Nogueira. |
Uma indagação comum é se o corpo do doador ficará deformado ou se o
caixão terá que permanecer fechado. O gerente da Central de
Transplantes, o médico Luciano Leão (foto), é categórico ao responder:
“A retirada dos órgãos é como qualquer cirurgia. Há anestesia e sutura
perfeita”. Ele explica que é obrigação entregar o corpo do doador
restituído e em perfeito estado. Como a captação das córneas exige a
retirada do globo ocular, é colocada uma prótese de silicone no local
dos olhos, o que garante a aparência normal com as pálpebras fechadas.
Decisão e lei
Para uns, o fim. Para outros, o recomeço, uma nova vida. Ao longo da
história da humanidade, a morte nunca deixou incólume quem fica,
independente de religião, espiritualidade ou ceticismo. Onde há laços
afetivos, os momentos finais não são fáceis. Entretanto, a medicina
proporciona um paralelo delicado: enquanto há a despedida, pode haver
também uma outra perspectiva de vida com a doação de órgãos. E a decisão
de seguir em frente e ajudar ao próximo cabe aos familiares.
Por isso o trabalho intenso nos corredores e leitos dos hospitais da
equipe. “Abordamos a família numa situação difícil, estão convivendo
com a perda de um ente querido e, ao mesmo tempo, solicitamos que aquela
perda se transforme em vida para outro. É um ato de pura generosidade. A
sociedade deve ser extremamente grata a essas pessoas”, declara Leão.
Quem deseja se tornar um doador deve sempre comunicar a vontade em
vida aos parentes mais próximos, conforme orienta o médico. Ele lembra
que anos atrás a opção de não doar constava no documento de identidade
e, caso não houvesse o registro dessa negativa, a doação seria
presumida. Essa medida caiu no ano de 2000 e, para o médico, a maneira
como funciona desde então é bem melhor. “O melhor método é, realmente,
conversar com a família. Se não, a doação se torna um gesto frio.
Transplante é uma coisa séria, exige comprometimento, boa vontade,
abnegação. A legislação brasileira é muito sensata: ela humaniza esse
processo e garante privacidade ao doador”.
A presidente da comissão de Direito Sanitário e à Saúde da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) – Seccional Goiás, Ana Lúcia Amorim (foto)
concorda com Leão: as leis são igualitárias e completas quanto ao
transplante e doação. A profissional explica que “não importa se quem
precisa do órgão dispõe do melhor plano de saúde ou se está interno num
hospital público. Todos são iguais na fila de espera. E há, inclusive,
imposição de penalidades sobre dispor de maneira onerosa de órgãos”.
Outro tópico de destaque da legislação, para a advogada, além da
necessidade de autorização dos familiares, é a proibição da retirada de
órgãos de indigentes. “Caso essa situação não estivesse prevista,
poderia ensejar um mercado negro de órgãos e até o desaparecimento de
pessoas. Se a lei for desrespeitada, há penalidade, de dois a seis anos
de reclusão e, se o crime for praticado mediante promessa de recompensa,
a pena pode aumentar para três a oito anos”.
Vida após o fim
Marcelo completaria 11 anos no dia 7 de dezembro do ano passado. No
entanto, sua vida foi abreviada por uma irresponsabilidade alheia: na
noite do dia 23 de setembro passado, um motorista alcoolizado colidiu
com o carro da família, que veio passear em Goiânia e retornava à casa,
em Caldas Novas. O acidente matou na hora a mãe, Telma. O pai, também
chamado Marcelo, chegou a receber os primeiros socorros do resgate, mas
não resistiu aos ferimentos e faleceu na ambulância. A irmã, Júlia, de
seis anos, única sobrevivente, sofreu uma lesão na coluna, foi
encaminhada ao hospital em estado grave e hoje passa por tratamento para
recuperar o movimento das pernas.
Dona Léa Durães não estava no carro no momento da batida, mas não
ficou ilesa. Cuidou do velório do filho e da nora, em Caldas, e também
olhou os netos transferidos ao Hospital de Urgência de Goiânia (Hugo).
O pequeno Marcelo foi o primeiro neto de Dona Léa. Era um garoto
especial, carismático e que gostava de ajudar as pessoas, segundo as
palavras doces e saudosas da avó. No primeiro dia de internação, ele foi
diagnosticado com morte encefálica. Depois, outros exames constataram o
fim. Ou, pelo menos, o que seria uma versão do fim. “Meu neto foi
embora muito cedo, não era justo acabar a vida assim. A doação de seus
órgãos foi uma maneira de perpetuá-lo. De alguma forma, uma parte dele
vive em outro lugar. Ele era muito jovem para entender isso, mas, do
mesmo jeito com que ele era generoso, acredito que fiz a vontade dele em
ajudar ao próximo”, relata a avó.
Em meio à dor de perder parte da família, Dona Léa conta que teve
forças para mudar de opinião quanto à doação, ao conversar e se informar
com a equipe da Central de Transplantes. “Reconheço que antes sempre
fui contrária à retirada dos órgãos. Hoje, defendo a doação de órgãos
para meus amigos e familiares. É um gesto muito importante. Há duas
opções: ajudar alguém que realmente precisa ou deixar o corpo debaixo da
terra. Além disso, nunca sabemos o futuro. Amanhã, qualquer um pode
precisar e vir a ser um receptor”, sentencia.
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